A Reforma Protestante foi um rompimento com o poderio da Igreja Medieval e seus desvios doutrinários, com destaque para as chamadas indulgências que se tornaram a mais escandalosa forma de iludir e explorar a fé das pessoas. O que eram as indulgências? Eram documentos vendidos pela Igreja através dos quais o Papa concedia perdão de pecados a quem os comprasse. O perdão, portanto, era concedido sem qualquer manifestação de arrependimento do pecador. Como se vê era uma atividade comercial cujo objetivo era arranjar dinheiro para a Igreja financiar suas conquistas territoriais e suas monumentais catedrais. O Papa Júlio II, por exemplo, em 1507 decidiu promover a venda de indulgências com o fim de recolher dinheiro para a construção da Catedral de São Pedro, em Roma.
Ora, com o perdão e a graça de Deus reduzidos a meros objetos de um comércio que movimentava elevadas somas de dinheiro, logicamente, os camponeses pobres estavam excluídos desse “favor divino” porque não dispunham de recursos financeiros. Esse estado de coisas levava, facilmente, à falsa compreensão de que os ricos eram abençoados e os pobres objetos da maldição divina.
Com tal postura a Igreja afastou-se de sua missão evangelizadora e de pastoreio do povo. E é nesse ambiente que Martinho Lutero, depois de longos e profundos estudos na Palavra de Deus, manifestou oposição àquele estado de coisas e iniciou o movimento que ficou conhecido como Reforma Protestante, cujos desdobramentos provocaram, posteriormente, o surgimento das denominações evangélicas.
Entretanto, observando certos comportamentos adotados por muitas igrejas evangélicas hoje, mesmo das chamadas denominações históricas, parece que perdeu-se de vista a herança dos reformadores e seu exemplo de ter nas Escrituras a única referência em termos de fé e prática. O que se tem presenciado são igrejas cada vez mais preocupadas em organizar cultos onde a prioridade é a promoção de eventos bombásticos ( milagres, busca de riqueza, exorcismos...) ao invés da efetiva adoração a Deus e da pregação do Evangelho.
Igrejas que têm incorporado ao culto cristão rituais mágicos e superstições promovendo verdadeiro sincretismo religioso. Além disso, passaram a considerar a situação de pobreza como resultado da operação de demônios que precisam ser exorcizados e, em contrapartida, elegeram a riqueza como sinal de bênção divina. Com isso as virtudes cristãs da solidariedade e da humildade passaram a plano secundário. Sinal dessa decadência são os apelos dramáticos que se faz em busca de dinheiro em muitas comunidades cristãs. Tais gestos desvirtuam o Evangelho e afasta as pessoas de um verdadeiro encontro com Cristo. Além disso, marcam um retorno à utilização da fé como objeto de comércio prática confrontada pelos reformadores.
Tais situações exigem uma séria consideração à luz da Bíblia, para que se possa empreender as necessárias reformas a fim de que se tenha uma Igreja evangélica comprometida com a Palavra de Deus e não com artifícios empresariais para atrair prosélitos e dinheiro para os cofres.
Um dos axiomas oriundos da Reforma foi “Eclésia reformata semper reformanda” – Igreja reformada sempre se reformando. Com isso queriam dizer os reformadores que a Igreja somente conseguiria ser fiel ao projeto de Deus na medida em que superassem o impulso, natural nas instituições, de se voltarem para sua autopreservação. Nessa perspectiva a Igreja precisa ousar fazer reformas períodicas na sua teologia que a capacite a uma resposta criativa aos desafios impostos pela história. Isso traz sérias implicações ao caminhar da Igreja Evangélica que hoje se vê encantada com o “deus deste século” configurado no acúmulo de riqueza material e no poder político.
A primeira delas é não se adaptar ao sistema opressor. Tomando o exemplo de Jesus e dos profetas a Igreja não deve se deixar manipular, nem ser aprisionada por sistemas econômicos ou ideologias políticas.
Uma segunda implicação é adotar uma postura crítica ante a realidade e levar a efeito a denúncia profética, posicionando-se contra as injustiças sociais e as idolatrias de quaisquer natureza que oprimem o povo. Ao longo dos anos a Igreja Evangélica vem abrindo mão desse compromisso e se aliando a este ou àquele político - geralmente comprometido com o sistema vigente – em troca de favores. Por conta dessas conveniências muitos evangélicos têm se calado ante as situações injustas, pelas quais os profetas de Israel, há muitos séculos, ergueram sua voz pelas ruas e becos da antiga Jerusalém. À denúncia devem seguir-se propostas efetivas de transformação da sociedade e o apoio às iniciativas de outras organizações que buscam o estabelecimento do direito e da justiça.
Necessário é, também, evitar os separatismos e as divisões nas igrejas. As divisões fragmentam e enfraquecem a ação evangélica, além disso, demonstram intolerância e incapacidade de conviver com as diferenças. A unidade dos evangélicos é fundamental para fortalecer seu testemunho, pois se trata de obedecer a uma das mais caras vontades de Jesus expressa pouco antes do seu sacrifício na cruz (cf. João 17:20-23).
O ideal reformador desafia a Igreja Evangélica a viver e anunciar o evangelho integral sem privilegiar somente os conteúdos que lhe pareçam convenientes. Um Evangelho que se efetive na vida das pessoas não apenas como conceitos doutrinários vazios, mas como encarnação da libertação total que Cristo veio trazer. Viver a integralidade do Evangelho resultará num povo mais saudável e risonho livre da sisuda carranca das imposições legalistas. Significa evitar o reducionismo da neurótica preocupação com a ação dos demônios e implica em envolver-se na luta efetiva que se trava no cotidiano da sociedade contra o sistema excludente sob o qual vive-se no Brasil. Tal projeto só será possível mediante uma saudável leitura das Escrituras que conduza os evangélicos a um genuíno arrependimento e à consequentes transformações pessoais e comunitárias.
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