segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Amanheceu



Há algum tempo percebia-se que algo não ia bem. Enclausurado em casa falava só o necessário. Aquele que antes era dado a expansões espirituosas, passou a fazer-se acompanhar de um silêncio inquietante. Um olhar vazio e sem brilho, emoldurado pelas rugas de um cenho fechado e da longa barba grisalha, tornou-se a principal decoração de sua face magra.

Os livros eram companheiros que sempre ocuparam grande espaço em sua vida. A casa era cheia deles. Podiam ser encontrados em todos os cômodos.  Lia vários, ao mesmo tempo, tanta era sua fome de literatura e de conhecimento. E enquanto lia espalhava-os pela casa. Eram encontrados no sofá, no criado mudo, sobre a cama, na mesa da cozinha, no banheiro, no carro e mesmo no chão. Todos eram lidos até o fim e vários com marcações e anotações, algumas detalhadíssimas. Era comum vê-lo andar com um livro aberto, especialmente a Bíblia, entusiasmado tentado partilhar um ou outro trecho que lhe havia causado particular impressão.

Um ciclo de perrengues profissionais e de má sorte o apanhou há anos. Havia planos, vontade, inteligência e muita esperança, porém, não conseguia progredir. As coisas simplesmente não davam certo. Era uma situação bizarra. Mesmo assim manteve-se firme, otimista... por muito tempo. Então... ideias sombrias começaram a oprimir sua mente confusa e subjugaram seu corpo cansado. “O que fiz da minha vida”. “Gastei meus anos em que, afinal?”. Não conseguia ver um sentido. “Por que fiquei neste lugar?”. “Devia ter feito alguma tentativa noutro lugar”. Ao pensar nisso acabava concluindo que nenhuma manobra ou decisão teria alterado o rumo das coisas. Sabia que tais perguntas não tem nenhum poder para redimir o passado ou para corrigi-lo.

Um abismo de trevas e frio o engoliu. Conceitos e razões se derreteram, esvaíram-se. A vida murchou como planta não irrigada. Uma névoa cinzenta envolveu sua existência. A seus olhos objetos, pessoas e paisagens perderam-se numa confusão opaca movendo-se numa lentidão fantasmagórica. As vozes amigas tornaram-se sons distantes e incompreensíveis que ecoavam repetindo-se indefinidamente até se calarem subjugados por zumbidos persistentes. Por um longo tempo nada soube de si mesmo. Nada havia a dizer e nem recursos para expressar-se de modo inteligível. Só o silêncio frio e ameaçador. Nenhuma companhia, nenhum amigo... ninguém. Estava irremediavelmente só. Um calafrio e um breve arrepio percorreu-lhe o corpo marcado pelo longo sofrimento.

Passaram-se muitos dias, meses, talvez anos... Um dia, porém, nas bordas de um horizonte negro uma suave claridade cinza anunciava-se tímida e lentamente assumiu tons rosáceos. Em breve pontas de luz dourada penetraram pelas frestas da janela indo projetar-se na parede como retalhos amarelos. Atrás dessa luz um halo de vida se insinuou sedutoramente e uma estranha sensação de esperança aninhou-se em sua alma cansada. E, apesar do inverno, teve a impressão de que uma leve onda de calor percorreu-lhe o corpo. Devagar, as pessoas e os objetos voltaram a ganhar cor e nitidez. Algo se agitou em seu interior. Alegres trinados chegaram a seus ouvidos. Junto à janela escutou, interessado, a tagarelice fácil e alegre de crianças que passavam rumo à escola. E naquele dia ele abriu as janelas e respirou animado o ar frio daquela inesquecível manhã de inverno.










quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O Parecer da Escritora


Durante alguns anos parei de editar meus textos neste espaço. Uma série de fatores contribuiu para esse longo intervalo. Circunstâncias várias. Mesmo assim, é claro, não deixei de escrever. Então, um dia, em que estava bastante frustrado, tomei  uma decisão:  Juntei alguns dos meus escritos, crônicas e contos e enviei a uma Escritora.

Eu queria ouvir, de alguém com autoridade, uma opinião objetiva e isenta sobre o que havia de consistente nas minhas “tentativas literárias”. O desejo de escrever era uma aspiração justa ou apenas uma pretensão vaidosa? Poucos dias depois recebi uma resposta franca e calorosa. Ela me chamou de “escritor”. Isso me fez refletir sobre a questão. Foi estimulante e desafiador, ao mesmo tempo. Com esse aval me veio mais segurança para seguir em frente nesse tortuoso caminho.
Esse honesto e carinhoso parecer  fez-me perceber que o “ser escritor(a)”  se configura desde o momento em que o “escrever” se impõe na vida de uma pessoa como algo incontornável.  Mesmo quando não tenha conseguido ainda transformar  sua obra num produto  -  um livro, por exemplo - e inseri-lo no mundo dos negócios editoriais.

A publicação, certamente, é o objetivo -  e o sonho - de todo escritor. É a publicação o fato que o expõe ao julgamento de uma comunidade leitora. Pode, através da publicação, ganhar a visibilidade social necessária para afirmar-se e, inclusive, para auto avaliar-se. Aí, no público leitor, a obra literária vai encontrar seu caminho: cairá no gosto de alguns e sofrerá a rejeição de outros.  
Foi pensando nessas coisas que me lembrei das lições de Rainer Maria Rilke no seu  “Cartas a um jovem poeta”[1]. O jovem Kappus enviara alguns de seus versos a Rilke e perguntava se eram bons. O Poeta respondeu a Kappus assim:
“Pergunta se seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem – usando da licença que me deu de aconselhá-lo – peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar neste momento – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever. Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo (...) ‘Sou mesmo forçado a escrever? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa sua vida de acordo com este necessidade.” (p.22,23)

O jovem Kappus expressa a ansiedade recorrente em todo aspirante a escritor ou poeta: será que meus escritos tem qualidade literária? E então começa a buscar em editores e escritores uma opinião técnica que justifique seus esforços. Porém, embora a publicação seja uma espécie de chancela ao escritor enquanto personagem social, tal ato não faz do publicado um escritor no sentido literário.  

Assim sugere Rainer. Na sua resposta ele considera que o fator decisivo que autoriza alguém a continuar insistindo em ser escritor é o ser guiado por uma espécie de vocação, de chamado. Uma pressão existencial irresistível que move uma pessoa a expressar suas alegrias, angústias e perplexidades através da escrita.

Para Rainer, portanto, o que estabelece alguém como escritor é o fato de tal ofício constituir-se em algo vital a essa pessoa. A identidade do escritor  não é definida por fatores externos como avaliação de críticos ou de publicação. O Poeta compreendia que se o escritor tivesse a plena consciência dos motivos que o levavam a escrever e  de que isso lhe fosse algo indispensável, então a publicação seria uma consequência natural.

Apesar de compreender que seja necessária essa autocompreensão por parte do escritor, não se pode negar a validade da exposição aos pares. Particularmente, àqueles que já estão na estrada a mais tempo e já, inclusive, avançaram para a fase da publicação. É natural, em qualquer processo de aprendizagem, aconselhar-se com os mais experientes. E tal consulta pode desencadear um desses dois processos na vida do aspirante: ou, encontra em si os traços dessa atração incontornável e assim sente-se incentivado a seguir em frente e continuar buscando seu caminho, ou conscientiza-se de que tudo não passava de fumaças de vaidade e sentir-se livre de ilusões para seguir outro tipo de projeto.


No meu caso foi estimulante e libertador. Fez-me colocar de lado as dúvidas e seguir em frente no meu exercício de escrever como uma espécie de “missão”, sem grandes preocupações com uma eventual publicação.  Não que isso me seja indiferente, de modo algum, porém, não será mais o objetivo fundamental, no entanto, não deixarei de persegui-lo. Felizmente hoje é possível publicar sem a necessidade de editar um livro impresso. Sou grato ao parecer da Escritora. E viva a internet.




[1] RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: Editora Globo, 1976.

domingo, 11 de novembro de 2018

Um alegre retorno



Depois de um longo intervalo sem postagens retorno e este espaço para continuar minhas reflexões. Fiz algumas alterações na aparência e no título do blog. Devo fazer, ainda, outras  mudanças no layout. No entanto, trata-se do mesmo blog, as mudanças foram apenas externas e a intenção é fazer postagens regulares.

O  “Carrancas do São Francisco” dá lugar, agora,  ao “Anotações do Adenilson”. Aqui pretendo continuar escrevendo sobre assuntos vinculados à Literatura, à História, à Teologia e a alguns temas do cotidiano: artigos, resenhas, crônicas e contos. Falarei especialmente de livros - uma das minhas grandes paixões - e espero me juntar a outras pessoas tão apaixonadas pelos livros e pela escrita quanto eu.
Um abraço.


sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O velho escorte verde


Ele era visto com a regularidade larga e prudente com a qual os pais visitam seus filhos adultos. Ao volante um senhor esguio com uma calva ampla e reluzente e seus óculos de lentes grossas – daquelas que deixam os olhos pequenininhos e com um leve tom de alheamento.  Um bigodinho grisalho lhe enfeitava a face simpática e generosa de vovô.
O velho escorte verde que dirigia ficava estacionado, geralmente, na vaga externa do apartamento 27-B, onde residia D. Ogla, uma senhora de meia idade, aposentada talvez, cujo rosto conserva traços de uma beleza loira já um tanto usurpada pelo tempo. Não tinha marido. Com ela morava um filho adulto, pai do Felipe, um garotinho esperto de uns dez anos, de olhos curiosos que denunciavam aquela fase da existência em que a vida se apresenta como um divertido parque de diversões.
D. Ogla era vista sempre num ir e vir ativo, sempre acompanhada pelo neto. Levava-o à escola pela manhã retornando para buscá-lo ao meio dia, além dos dias em que ele tinha aulas de natação à tarde. Considerando as obrigatórias visitas semanais ao supermercado, e as azedas críticas que fazia ao síndico em função de problemas que eventualmente surgiam no prédio, D. Ogla levava a vida no ritmo comum da maioria das donas-de-casa num centro urbano.
Mas, sem que nada aparente acontecesse  rotina das visitas paternas quebrou-se. Um dia o corcel verde apareceu estacionado na vaga coberta e não fora trazido pelo velho condutor. Algo incomum acontecera. Os dias foram passando e o velho escorte continuou lá. Eventualmente, o filho de D. Ogla aparecia e funcionava o motor do veículo. Às vezes dava uma volta pelo quarteirão. Provavelmente para evitar que a bateria descarregasse ou coisa que o valha. Porém, tal prática deixou de ser realizada há muito tempo.

Por esse tempo o carro de D. Ogla passou a ser estacionado na vaga externa e a presença dela no prédio foi se tornando escassa. Seu ir e vir já não era tão intenso e seu carro quase nunca era visto no estacionamento. A infantil algazarra que o Felipe provocava, ora com seus barulhentos passeios de skate pelo estacionamento, ora com o futebol praticado com o pai, foi desaparecendo, até o completo silêncio. O velho nunca mais foi visto. O escorte verde continua na vaga do 27-B. Uma fina camada de pó o envolveu como um véu mortuário evocando uma súbita e melancólica ausência.