quinta-feira, 15 de novembro de 2018

O Parecer da Escritora


Durante alguns anos parei de editar meus textos neste espaço. Uma série de fatores contribuiu para esse longo intervalo. Circunstâncias várias. Mesmo assim, é claro, não deixei de escrever. Então, um dia, em que estava bastante frustrado, tomei  uma decisão:  Juntei alguns dos meus escritos, crônicas e contos e enviei a uma Escritora.

Eu queria ouvir, de alguém com autoridade, uma opinião objetiva e isenta sobre o que havia de consistente nas minhas “tentativas literárias”. O desejo de escrever era uma aspiração justa ou apenas uma pretensão vaidosa? Poucos dias depois recebi uma resposta franca e calorosa. Ela me chamou de “escritor”. Isso me fez refletir sobre a questão. Foi estimulante e desafiador, ao mesmo tempo. Com esse aval me veio mais segurança para seguir em frente nesse tortuoso caminho.
Esse honesto e carinhoso parecer  fez-me perceber que o “ser escritor(a)”  se configura desde o momento em que o “escrever” se impõe na vida de uma pessoa como algo incontornável.  Mesmo quando não tenha conseguido ainda transformar  sua obra num produto  -  um livro, por exemplo - e inseri-lo no mundo dos negócios editoriais.

A publicação, certamente, é o objetivo -  e o sonho - de todo escritor. É a publicação o fato que o expõe ao julgamento de uma comunidade leitora. Pode, através da publicação, ganhar a visibilidade social necessária para afirmar-se e, inclusive, para auto avaliar-se. Aí, no público leitor, a obra literária vai encontrar seu caminho: cairá no gosto de alguns e sofrerá a rejeição de outros.  
Foi pensando nessas coisas que me lembrei das lições de Rainer Maria Rilke no seu  “Cartas a um jovem poeta”[1]. O jovem Kappus enviara alguns de seus versos a Rilke e perguntava se eram bons. O Poeta respondeu a Kappus assim:
“Pergunta se seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem – usando da licença que me deu de aconselhá-lo – peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar neste momento – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever. Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo (...) ‘Sou mesmo forçado a escrever? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa sua vida de acordo com este necessidade.” (p.22,23)

O jovem Kappus expressa a ansiedade recorrente em todo aspirante a escritor ou poeta: será que meus escritos tem qualidade literária? E então começa a buscar em editores e escritores uma opinião técnica que justifique seus esforços. Porém, embora a publicação seja uma espécie de chancela ao escritor enquanto personagem social, tal ato não faz do publicado um escritor no sentido literário.  

Assim sugere Rainer. Na sua resposta ele considera que o fator decisivo que autoriza alguém a continuar insistindo em ser escritor é o ser guiado por uma espécie de vocação, de chamado. Uma pressão existencial irresistível que move uma pessoa a expressar suas alegrias, angústias e perplexidades através da escrita.

Para Rainer, portanto, o que estabelece alguém como escritor é o fato de tal ofício constituir-se em algo vital a essa pessoa. A identidade do escritor  não é definida por fatores externos como avaliação de críticos ou de publicação. O Poeta compreendia que se o escritor tivesse a plena consciência dos motivos que o levavam a escrever e  de que isso lhe fosse algo indispensável, então a publicação seria uma consequência natural.

Apesar de compreender que seja necessária essa autocompreensão por parte do escritor, não se pode negar a validade da exposição aos pares. Particularmente, àqueles que já estão na estrada a mais tempo e já, inclusive, avançaram para a fase da publicação. É natural, em qualquer processo de aprendizagem, aconselhar-se com os mais experientes. E tal consulta pode desencadear um desses dois processos na vida do aspirante: ou, encontra em si os traços dessa atração incontornável e assim sente-se incentivado a seguir em frente e continuar buscando seu caminho, ou conscientiza-se de que tudo não passava de fumaças de vaidade e sentir-se livre de ilusões para seguir outro tipo de projeto.


No meu caso foi estimulante e libertador. Fez-me colocar de lado as dúvidas e seguir em frente no meu exercício de escrever como uma espécie de “missão”, sem grandes preocupações com uma eventual publicação.  Não que isso me seja indiferente, de modo algum, porém, não será mais o objetivo fundamental, no entanto, não deixarei de persegui-lo. Felizmente hoje é possível publicar sem a necessidade de editar um livro impresso. Sou grato ao parecer da Escritora. E viva a internet.




[1] RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: Editora Globo, 1976.

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