A
escrita da história é um dos temas mais problematizados no ofício de
historiador. A configuração do discurso historiográfico em sua natureza,
objetividade e até legitimidade é objeto de recorrentes debates no campo da
teoria da história. A característica marcante das coisas deste mundo é o fato
de trazerem a marca da historicidade, ou seja, não existem simplesmente, mas
tem uma história, mesmo aquelas que se apresentam como se fossem naturais e
existissem desde sempre. Antes resultam do gênio humano e ganharam aspecto
contemporâneo ao longo dos anos, décadas ou séculos de lenta construção.
Até
constituir-se numa “peça” historiográfica o trabalho do historiador passa por
um processo de elaboração em que são feitas escolhas teóricas e metodológicas –
inevitavelmente marcadas pela subjetividade do historiador - que influenciarão
de forma determinante o trabalho final. A escrita da história tenta articular o
passado, não na expressão crua de sua ocorrência, mas enquanto discurso
compreensível nos limites das fontes disponíveis e circunscrito às questões
levantadas pelo historiador. Como a relação com o passado só se viabiliza
através de seus vestígios e estes não se constituem numa crônica natural que
fala para sí mesma sem interferências, o passado, configurado na obra
historiográfica não é uma descrição, mas uma construção resultante da ação do
historiador na articulação de suas fontes.
A tarefa se inicia a partir de questões para as quais se
busca respostas. Munido de perguntas o historiador parte para o inventário de
suas fontes que são: artefatos escritos, ou não, aos quais o historiador
atribui o status de fontes. Caberá, portanto, ao pesquisador da história
organizar, recortar, formatar elementos dispersos do passado escolhendo o que
excluir e o que incluir segundo critérios que os tornem compreensíveis ao
público a que se destina. Segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães, opera-se aí
uma verdadeira “domesticação do passado”. Uma das marcas da “operação
historiográfica”, para usar uma expressão de Michel de Certeau, é o fato de que
para transformar as práticas e ações humanas aleatórias em fato histórico,
faz-se necessário ordená-los, segundo critérios pertinentes ao ofício de
historiador e escritura-los num recorte temporal, a partir de questões postas
pelo presente (para marcar um dos princípios dos ANNALES).
Na
construção de seu trabalho o historiador se torna, ao mesmo tempo, um intérprete
de suas fontes. A compreensão que obtém de seu material é, pois, compreensão
interpretada. Tal fenômeno, na perspectiva de teóricos de tendências
positivistas, põe em questão a objetividade da história enquanto pensada nos
moldes da ciência como se buscou no século XIX. Tal resistência abre espaço
para se considerar que a objetividade em história não se assenta na
coincidência cabal entre o vivido e o narrado, comparável àquela que se espera
da ciência, mas numa objetividade possível à racionalidade da história.
Considerando que a história é um conhecimento que é construído através de
vestígios ou indícios, o historiador nunca se defronta objetivamente com o
passado em sí por tratar-se de uma impossibilidade. Assim o objeto da história
não é o passado integral tal como se deu, mas os vestígios deixados pelos
homens que o experienciaram.
Na
abordagem do passado o historiador não encontrará um passado consignado e
latente em documentos (história metódica), antes terá de reconstruir esse
passado guiado por questões específicas que, por sua vez, serão o parâmetro
para a escolha das fontes dentre a diversidade de “vestígios” que esteja à sua
disposição. Nesta perspectiva o
historiador “fabrica” seus fatos históricos, escolhe suas fontes e define sua
metodologia. Tal conjunto lhe servirá de instrumental para responder a suas
questões/hipóteses, constituindo assim uma (nova) versão histórica de
determinado tema. Com isso o historiador oferece à sociedade uma nova
representação do passado histórico que entrará em diálogo com outras
representações já estabelecidas sobre o mesmo assunto, seja como versão complementar contestando fontes ou metodologia, seja como desconstrução total de
representações anteriores.
A
escrita da história, portanto, se inscreve num processo contínuo de reescritas
- que são também releituras – do passado. Assim, o caráter interpretativo está
incontornavelmente vinculado ao ofício de historiador. Nesse aspecto tanto a
história chamada oficial, como suas versões críticas, estão ancoradas pelo viés
da interpretação e, tanto a uma como às outras subjaz motivações
sócio-políticas com interesses próprios na defesa de suas pautas. Portanto, o
uso de novas técnicas, a elaboração de novas metodologias, a descoberta de
novas fontes, a formulação de novas questões sobre o tema, ou ainda a adoção de
novas abordagens teóricas são fatores que podem originar novas interpretações
históricas demonstrando o caráter dinâmico do conhecimento histórico.
O
caráter fragmentário das fontes cria espaços em branco na pesquisa histórica,
os quais são preenchidos por algum conteúdo imaginativo (Collingwood). Tal
conteúdo não se resume a um ato aleatório ou a uma simples invenção. Antes,
guiado pelo teor geral das fontes e pelo próprio tema abordado, o historiador
levanta hipóteses sobre o que poderia ter ocorrido naquele hiato deixado pelas
fontes e supre tais lacunas com a informação imaginativa que seja pertinente e
coerente.
No
entanto, para que tal construção seja reconhecida como obra historiográfica é
necessário que ela passe pelo crivo de um processo em que se combinam um lugar
social de fala e referências, com os procedimentos próprios à prática
historiográfica configurados afinal numa escrita. Segundo M. de Certeau, essas
são as premissas que dão dignidade historiográfica à obra de historiador.
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