segunda-feira, 30 de setembro de 2013

História e interpretação

A escrita da história é um dos temas mais problematizados no ofício de historiador. A configuração do discurso historiográfico em sua natureza, objetividade e até legitimidade é objeto de recorrentes debates no campo da teoria da história. A característica marcante das coisas deste mundo é o fato de trazerem a marca da historicidade, ou seja, não existem simplesmente, mas tem uma história, mesmo aquelas que se apresentam como se fossem naturais e existissem desde sempre. Antes resultam do gênio humano e ganharam aspecto contemporâneo ao longo dos anos, décadas ou séculos de lenta construção.
Até constituir-se numa “peça” historiográfica o trabalho do historiador passa por um processo de elaboração em que são feitas escolhas teóricas e metodológicas – inevitavelmente marcadas pela subjetividade do historiador - que influenciarão de forma determinante o trabalho final. A escrita da história tenta articular o passado, não na expressão crua de sua ocorrência, mas enquanto discurso compreensível nos limites das fontes disponíveis e circunscrito às questões levantadas pelo historiador. Como a relação com o passado só se viabiliza através de seus vestígios e estes não se constituem numa crônica natural que fala para sí mesma sem interferências, o passado, configurado na obra historiográfica não é uma descrição, mas uma construção resultante da ação do historiador na articulação de suas fontes.
            A tarefa se inicia a partir de questões para as quais se busca respostas. Munido de perguntas o historiador parte para o inventário de suas fontes que são: artefatos escritos, ou não, aos quais o historiador atribui o status de fontes. Caberá, portanto, ao pesquisador da história organizar, recortar, formatar elementos dispersos do passado escolhendo o que excluir e o que incluir segundo critérios que os tornem compreensíveis ao público a que se destina. Segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães, opera-se aí uma verdadeira “domesticação do passado”. Uma das marcas da “operação historiográfica”, para usar uma expressão de Michel de Certeau, é o fato de que para transformar as práticas e ações humanas aleatórias em fato histórico, faz-se necessário ordená-los, segundo critérios pertinentes ao ofício de historiador e escritura-los num recorte temporal, a partir de questões postas pelo presente (para marcar um dos princípios dos ANNALES).
Na construção de seu trabalho o historiador se torna, ao mesmo tempo, um intérprete de suas fontes. A compreensão que obtém de seu material é, pois, compreensão interpretada. Tal fenômeno, na perspectiva de teóricos de tendências positivistas, põe em questão a objetividade da história enquanto pensada nos moldes da ciência como se buscou no século XIX. Tal resistência abre espaço para se considerar que a objetividade em história não se assenta na coincidência cabal entre o vivido e o narrado, comparável àquela que se espera da ciência, mas numa objetividade possível à racionalidade da história. Considerando que a história é um conhecimento que é construído através de vestígios ou indícios, o historiador nunca se defronta objetivamente com o passado em sí por tratar-se de uma impossibilidade. Assim o objeto da história não é o passado integral tal como se deu, mas os vestígios deixados pelos homens que o experienciaram.
Na abordagem do passado o historiador não encontrará um passado consignado e latente em documentos (história metódica), antes terá de reconstruir esse passado guiado por questões específicas que, por sua vez, serão o parâmetro para a escolha das fontes dentre a diversidade de “vestígios” que esteja à sua disposição. Nesta perspectiva  o historiador “fabrica” seus fatos históricos, escolhe suas fontes e define sua metodologia. Tal conjunto lhe servirá de instrumental para responder a suas questões/hipóteses, constituindo assim uma (nova) versão histórica de determinado tema. Com isso o historiador oferece à sociedade uma nova representação do passado histórico que entrará em diálogo com outras representações já estabelecidas sobre o mesmo assunto,  seja como versão complementar contestando fontes ou metodologia, seja como desconstrução total de representações anteriores.
A escrita da história, portanto, se inscreve num processo contínuo de reescritas - que são também releituras – do passado. Assim, o caráter interpretativo está incontornavelmente vinculado ao ofício de historiador. Nesse aspecto tanto a história chamada oficial, como suas versões críticas, estão ancoradas pelo viés da interpretação e, tanto a uma como às outras subjaz motivações sócio-políticas com interesses próprios na defesa de suas pautas. Portanto, o uso de novas técnicas, a elaboração de novas metodologias, a descoberta de novas fontes, a formulação de novas questões sobre o tema, ou ainda a adoção de novas abordagens teóricas são fatores que podem originar novas interpretações históricas demonstrando o caráter dinâmico do conhecimento histórico.
O caráter fragmentário das fontes cria espaços em branco na pesquisa histórica, os quais são preenchidos por algum conteúdo imaginativo (Collingwood). Tal conteúdo não se resume a um ato aleatório ou a uma simples invenção. Antes, guiado pelo teor geral das fontes e pelo próprio tema abordado, o historiador levanta hipóteses sobre o que poderia ter ocorrido naquele hiato deixado pelas fontes e supre tais lacunas com a informação imaginativa que seja pertinente e coerente.

No entanto, para que tal construção seja reconhecida como obra historiográfica é necessário que ela passe pelo crivo de um processo em que se combinam um lugar social de fala e referências, com os procedimentos próprios à prática historiográfica configurados afinal numa escrita. Segundo M. de Certeau, essas são as premissas que dão dignidade historiográfica à obra de historiador.

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