O Paradigma: tornando-nos
mais semelhantes a Cristo
John Stott
Lembro-me muito claramente de que há vários anos, sendo um cristão ainda
jovem, a questão que me causava perplexidade (e a alguns amigos meus também)
era esta: Qual é o propósito de Deus para o seu povo? Uma vez que tenhamos nos
convertido, uma vez que tenhamos sido salvos e recebido vida nova em Jesus
Cristo, o que vem depois? É claro que conhecíamos a famosa declaração do Breve
Catecismo de Westminster: “O fim principal do homem é glorificar a Deus, e
gozá-lo para sempre”. Sabíamos disso e críamos nisso.
Também refletíamos sobre algumas declarações mais breves, como uma de
apenas sete palavras: “Ama a Deus e ao teu próximo”. Mas de algum modo, nenhuma
delas, nem outra que pudéssemos citar, parecia plenamente satisfatória.
Portanto, quero compartilhar com vocês o entendimento que pacificou minha mente
à medida que me aproximo do final de minha peregrinação neste mundo. Esse
entendimento é: Deus quer que seu povo se torne semelhante a Cristo. A vontade
de Deus para o seu povo é que sejamos conformes à imagem de Cristo.
Sendo isso verdade, quero propor o seguinte: em primeiro lugar, demonstrarmos a base bíblica do chamado para sermos conformes à imagem de Cristo; em segundo, extrairmos do Novo Testamento alguns exemplos; em terceiro, tirarmos algumas conclusões práticas a respeito. Tudo isso relacionado a nos assemelharmos a Cristo.
Sendo isso verdade, quero propor o seguinte: em primeiro lugar, demonstrarmos a base bíblica do chamado para sermos conformes à imagem de Cristo; em segundo, extrairmos do Novo Testamento alguns exemplos; em terceiro, tirarmos algumas conclusões práticas a respeito. Tudo isso relacionado a nos assemelharmos a Cristo.
Então, vejamos primeiro a base bíblica do chamado para sermos
semelhantes a Cristo. Essa base não se limita a uma passagem só. Seu conteúdo é
substancial demais para ser encapsulado em um único texto. De fato, essa base
consiste de três textos, os quais, aliás, faríamos muito bem em incorporar
conjuntamente à nossa vida e visão cristã: Romanos 8:29, 2 Coríntios 3:18 e 1
João 3:2. Vamos fazer uma breve análise deles.
Romanos 8:29 diz que Deus predestinou seu povo para ser conforme à
imagem do Filho, ou seja, tornar-se semelhante a Jesus. Todos sabemos que Adão,
ao cair, perdeu muito — mas não tudo — da imagem divina conforme a qual fora
criado. Deus, todavia, a restaurou em Cristo. Conformar-se à imagem de Deus
significa tornar-se semelhante a Jesus: O propósito eterno de predestinação
divina para nós é tornar-nos conformes à imagem de Cristo.
O segundo texto é 2 Coríntios 3:18: “E todos nós, com o rosto
desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos
transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o
Espírito”. Portanto é pelo próprio Espírito que habita em nós que somos
transformados de glória em glória — que visão magnífica! Nesta segunda etapa do
processo de conformação à imagem de Cristo, percebemos que a perspectiva muda
do passado para o presente, da predestinação eterna de Deus para a
transformação que ele opera em nós agora pelo Espírito Santo. O propósito
eterno da predestinação divina de nos tornar como Cristo avança, tornando-se a obra
histórica de Deus em nós para nos transformar, por intermédio do Espírito
Santo, segundo a imagem de Jesus.
Isso nos leva ao terceiro texto: 1 João 3:2: “Amados, agora, somos
filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que,
quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo
como ele é”. Não sabemos em detalhes como seremos no último dia, mas o que de
fato sabemos é que seremos semelhantes a Cristo. Não precisamos saber de mais
nada além disso. Contentamo-nos em conhecer a verdade maravilhosa de que
estaremos com Cristo e seremos semelhantes a ele, eternamente.
Aqui há três perspectivas: passado, presente e futuro. Todas apontam na
mesma direção: há o propósito eterno de Deus, pelo qual fomos predestinados; há
o propósito histórico de Deus, pelo qual estamos sendo transformados pelo
Espírito Santo; e há o propósito final ou escatológico de Deus, pelo qual
seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é. Estes três propósitos — o
eterno, o histórico e o escatológico — se unem e apontam para um mesmo
objetivo: a conformação do homem à imagem de Cristo. Este, afirmo, é o
propósito de Deus para o seu povo. E a base bíblica para nos tornarmos
semelhantes a Cristo é o fato de que este é o propósito de Deus para o seu
povo.
Prosseguindo, quero ilustrar essa verdade com alguns exemplos do Novo
Testamento. Em primeiro lugar, creio ser importante que nós façamos uma
afirmação abrangente como a do apóstolo João em 1 João 2:6: “Aquele que diz que
permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou”. Em outras
palavras, se nos dizemos cristãos, temos de ser semelhantes a Cristo. Este é o
primeiro exemplo do Novo Testamento: temos de ser como o Cristo Encarnado.
Alguns de vocês podem ficar horrorizados com essa idéia e rechaçá-la de
imediato. “Ora”, me dirão, “não é óbvio que a Encarnação foi um evento
absolutamente único, não sendo possível reproduzi-lo de modo algum?” Minha
resposta é sim e não. Sim, foi único no sentido de que o Filho de Deus revestiu-se
da nossa humanidade em Jesus de Nazaré, uma só vez e para sempre, o que jamais
se repetirá. Isso é verdade. Contudo, há outro sentido no qual a Encarnação não
foi um evento único: a maravilhosa graça de Deus manifestada na Encarnação de
Cristo deve ser imitada por todos nós. Nesse sentido, a Encarnação não foi
única, exclusiva, mas universal. Somos todos chamados a seguir o supremo
exemplo de humildade que ele nos deu ao descer dos céus para a terra. Por isso
Paulo diz em Filipenses 2:5-8: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como
usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma
de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana,
a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz”.
Precisamos ser semelhantes a Cristo em sua Encarnação no que diz respeito à sua
admirável humildade, uma humilhação auto-imposta que está por trás da
Encarnação.
Em segundo lugar, precisamos ser semelhantes a Cristo em sua prontidão
em servir. Agora, passemos de sua Encarnação à sua vida de serviço; de seu
nascimento à sua vida; do início ao fim. Quero convidá-los a subir comigo ao
cenáculo onde Jesus passou sua última noite com os discípulos, conforme vemos
no evangelho de João, capítulo 13: “Tirou a vestimenta de cima e, tomando uma
toalha, cingiu-se com ela. Depois, deitou água na bacia e passou a lavar os pés
aos discípulos e a enxugar-lhos com a toalha com que estava cingido”. Ao
terminar, retomou seu lugar e disse-lhes: “Ora, se eu, sendo o Senhor e o
Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Porque
eu vos dei o exemplo” — note-se a palavra — “para que, como eu vos fiz, façais
vós também”.
Há cristãos que interpretam literalmente esse mandamento de Jesus e
fazem a cerimônia do lava-pés em dia de Ceia do Senhor ou na Quinta-feira Santa
— e podem até estar certos em fazê-lo. Porém, vejo que a maioria de nós fez
apenas uma transposição cultural do mandamento de Jesus: aquilo que Jesus fez,
que em sua cultura era função de um escravo, nós reproduzimos em nossa cultura
sem levarmos em conta que nada há de humilhante ou degradante em o fazermos uns
pelos outros.
Em terceiro lugar, temos de ser semelhantes a Cristo em seu amor. Isso
me lembra especificamente Efésios 5:2: “Andai em amor, como também Cristo nos
amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em
aroma suave”. Observe que o texto se divide em duas partes. A primeira fala de
andarmos em amor, um mandamento no sentido de que toda a nossa conduta seja
caracterizada pelo amor, mas a segunda parte do versículo diz que ele se
entregou a si mesmo por nós, descrevendo não uma ação contínua, mas um aoristo,
um tempo verbal passado, fazendo uma clara alusão à cruz. Paulo está nos
conclamando a sermos semelhantes a Cristo em sua morte, a amarmos com o mesmo
amor que, no Calvário, altruistamente se doa.
Observe a idéia que aqui se desenvolve: Paulo está nos instando a sermos
semelhantes a Cristo na Encarnação, ao Cristo que lava os pés dos irmãos e ao
Cristo crucificado. Esses três acontecimentos na vida de Cristo nos mostram
claramente o que significa, na prática, sermos conformes à imagem de Cristo.
Em quarto lugar, temos de ser semelhantes a Cristo em sua abnegação
paciente. No exemplo a seguir, consideraremos não o ensino de Paulo, mas o de
Pedro. Cada capítulo da primeira carta de Pedro diz algo sobre sofrermos como
Cristo, pois a carta tem como pano de fundo histórico o início da perseguição.
Especialmente no capítulo 2 de 1 Pedro, os escravos cristãos são instados a, se
castigados injustamente, suportarem e não retribuírem o mal com o mal. E Pedro
prossegue dizendo que para isto mesmo fomos chamados, pois Cristo também
sofreu, deixando-nos o exemplo — outra vez a mesma palavra — para seguirmos os
seus passos. Este chamado para sermos semelhantes a Cristo em meio ao
sofrimento injusto pode perfeitamente se tornar cada vez mais significativo à
medida que as perseguições se avolumam em muitas culturas do mundo atual.
No quinto e último exemplo que quero extrair do Novo Testamento,
precisamos ser semelhantes a Cristo em sua missão. Tendo examinado os ensinos
de Paulo e de Pedro, veremos agora os ensinos de Jesus registrados por João. Em
João 17:18, Jesus, orando, diz: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu
os enviei ao mundo”, referindo-se a nós. E na Comissão, em João 20:21, Jesus
diz: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”. Estas palavras carregam
um significado imensamente importante. Não se trata apenas da versão joanina da
Grande Comissão; é também uma instrução no sentido de que a missão dos
discípulos no mundo deveria ser semelhante à do próprio Cristo. Em que aspecto?
Nestes textos, as palavras-chave são “envio ao mundo”. Do mesmo modo como
Cristo entrou em nosso mundo, nós também devemos entrar no “mundo” das outras
pessoas. É como explicou, com muita propriedade, o Arcebispo Michael Ramsey há alguns
anos: “Somente à medida que sairmos e nos colocarmos, com compaixão amorosa, do
lado de dentro das dúvidas do duvidoso, das indagações do indagador e da
solidão do que se perdeu no caminho é que poderemos afirmar e recomendar a fé
que professamos”.
Quando falamos em “evangelização encarnacional” é exatamente disto que
falamos: entrar no mundo do outro. Toda missão genuína é uma missão
encarnacional. Temos de ser semelhantes a Cristo em sua missão. Estas são as
cinco principais formas de sermos conformes à imagem de Cristo: em sua
Encarnação, em seu serviço, em seu amor, em sua abnegação paciente e em sua
missão.
Quero, de modo bem sucinto, falar de três conseqüências práticas da
assemelhação a Cristo.
Primeira: A assemelhação a Cristo e o sofrimento. Por si só, o tema do
sofrimento é bem complexo, e os cristãos tentam compreendê-lo de variados
pontos de vista. Um deles se sobressai: aquele segundo o qual o sofrimento faz
parte do processo da transformação que Deus faz em nós para nos assemelharmos a
Cristo. Seja qual for a natureza do nosso sofrimento — uma decepção, uma
frustração ou qualquer outra tragédia dolorosa —, precisamos tentar enxergá-lo
à luz de Romanos 8:28-29. Romanos 8:28 diz que Deus está continuamente operando
para o bem do seu povo, e Romanos 8:29 revela que o seu bom propósito é nos
tornar semelhantes a Cristo.
Segunda: A assemelhação a Cristo e o desafio da evangelização.
Provavelmente você já se perguntou: “Por que será que, até onde percebo, em
muitas situações os nossos esforços evangelísticos freqüentemente terminam em
fracasso?” As razões podem ser várias e não quero ser simplista, mas uma das
razões principais é que nós não somos parecidos com o Cristo que anunciamos.
John Poulton, que abordou o tema num livreto muito pertinente, intitulado A
Today Sort of Evangelism, escreveu:
“A pregação mais eficaz provém daqueles que vivem conforme aquilo que
dizem. Eles próprios são a mensagem. Os cristãos têm de ser semelhantes àquilo
que falam. A comunicação acontece fundamentalmente a partir da pessoa, não de
palavras ou idéias. É no mais íntimo das pessoas que a autenticidade se faz entender;
o que agora se transmite com eficácia é, basicamente, a autenticidade pessoal”.
Isto é assemelhar-se à imagem de Cristo. Permitam-me dar outro exemplo.
Havia um professor universitário hindu na Índia que, certa vez, identificando
que um de seus alunos era cristão, disse-lhe: “Se vocês, cristãos, vivessem
como Jesus Cristo viveu, a Índia estaria aos seus pés amanhã mesmo”. Eu penso
que a Índia já estaria aos seus pés hoje mesmo se os cristãos vivessem como
Jesus viveu. Oriundo do mundo islâmico, o Reverendo Iskandar Jadeed, árabe e
ex-muçulmano, disse: “Se todos os cristãos fossem cristãos — isto é,
semelhantes a Cristo —, hoje o islã não existiria mais”.
Isto me leva ao terceiro ponto: Assemelhação a Cristo e presença do
Espírito Santo em nós. Nesta noite falei muito sobre assemelhação a Cristo, mas
será que ela é alcançável? Por nossas próprias forças é evidente que não, mas
Deus nos deu seu Santo Espírito para habitar em nós e nos transformar de dentro
para fora. William Temple, que foi arcebispo na década de 40, costumava
ilustrar este ponto falando sobre Shakespeare:
“Não adianta me darem uma peça como Hamlet ou O
Rei Lear e me mandarem escrever algo semelhante. Shakespeare era
capaz, eu não. Também não adianta me mostrarem uma vida como a de Jesus e me
mandarem viver de igual modo. Jesus era capaz, eu não. Porém, se o gênio de
Shakespeare pudesse entrar e viver em mim, então eu seria capaz de escrever
peças como as dele. E se o Espírito Santo puder entrar e habitar em mim, então
eu serei capaz de viver uma vida como a de Jesus”.
Para concluir, um breve resumo do que tentamos pensar juntos aqui hoje:
O propósito de Deus é nos tornar semelhantes a Cristo. O modo como Deus nos
torna conformes à imagem de Cristo é enchendo-nos do seu Espírito. Em outras palavras,
a conclusão é de natureza trinitária, pois envolve o Pai, o Filho e o Espírito
Santo.
Fonte do original em inglês: http://www.langhampartnership.org/2007/08/06/john-stott-address-at-keswick/ Tradução: F. R. Castelo Branco | Outubro 2007. Este artigo foi postado por Ultimatoonline em
1 de novembro de 2012 às 13:51, e está arquivado em Artigos.
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